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Os entrelaçamentos entre a arte e a memória são variados. Uma obra de arte se sustenta nas experiências do artista. Seu contexto cultural, artístico e social conforma, em grande medida, as escolhas que ela realiza ao determinar o tipo de materialidade da obra, os suportes conceituais que ela contém, as formas expressivas que ela enseja e na emissão de significados que ela projeta para o público. A obra de arte como emanação da memória pode ser uma projeção da intimidade do artista ou um chamado a questões políticas, sociais e culturais que são estruturantes da vida coletiva, mas muitas vezes estão silenciadas ou carecem da atenção devida pela sociedade.
Carne Seca (2014), de Marcelo Armani, é, de um modo ao mesmo tempo complexo e direto, um desses trabalhos que atua como dispositivo-denúncia de uma ferida aberta da sociedade, provocando estremecimentos na memória coletiva. O artista construiu uma instalação sonora que demanda a reflexão acerca do papel da mão-de-obra escrava na construção do Estado do Rio Grande do Sul. Através dos elementos esculturais da obra, que se manifesta na forma de corpos feitos de sal deitados sobre o piso, Armani alerta que a produção do principal produto agropastoril gaúcho, a carne seca – ou charque, hoje uma marca identitária do Estado –, resultou de um sistema de terrível exploração dos escravos africanos submetidos a condições sub-humanas de vida e trabalho. Os elementos sonoros da instalação lembram os sons de um navio em alto-mar, remetendo ao tráfico humano das pessoas oriundas da África em condições humilhantes e degradantes para trabalharem nas charqueadas e em tantas outras lidas na condição de escravos. A instalação quebra, com contundência, os elementos que sustentam a construção histórica do imaginário gaúcho, que privilegia a memória da contribuição étnica dos imigrantes europeus, sobretudo alemães e italianos, em detrimento do significativo aporte dos negros e indígenas para o desenvolvimento e para a cultura do Estado. Sem ceder à sedução das obviedades e dos clichês, Carne Seca é uma obra sonora que nos instiga, pela exploração dos sentidos, a reflexão sobre a dívida histórica que temos como povo com a comunidade negra, ajudando a colocar a tragédia da escravidão em um plano de atenção até hoje não instituído nas narrativas consagradas sobre a história gaúcha. Márcio Tavares dos Santos Curador e Historiador Brasília, julho de 2015. |